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‘A ONU preferiu homenagens à denúncia e condenação do atentado’

Dez anos sem falar publicamente sobre o atentado à sede da ONU, em Bagdá, que matou Sérgio Vieira de Mello, Carolina Larriera – sua companheira na época – ataca a ONU. “Não foram adotadas medidas elementares para garantir nossa segurança”, diz, salientando que as investigações foram “nulas” e que os EUA e a ONU não deram atenção aos alertas do diplomata.
 

Bastante magoada, a argentina – funcionária da organização durante dez anos – acredita que o tratamento dispensado a ela pela ONU foi “sempre lento, arrevesado e, em muitos aspectos, contraditório”.

Em sua primeira entrevista pós-atentado, feita por e-mail na semana passada – pouco antes de aterrissar no Rio, vinda de Nova York – Carolina lembra que foi voluntária na ONU, em 1995, tendo trabalhado na sede, em NY, e em missões de manutenção da paz. Conheceu Sérgio no Timor Leste, acompanhou-o em sua missão no Iraque e estava no prédio atingido no momento do ataque que matou o diplomata. Desde então, não tem sossego. “Não consegui assistir a nenhum dos filmes e documentários que eu mesma promovi.”

Hoje associada do Centro Carr de Direitos Humanos, em Harvard, ela continua na ponte-aérea Cambridge-Argentina-Brasil, em sua luta por políticas públicas. E clama por reparação às vítimas e a conservação da memória de Vieira de Mello. Nesse processo, segundo ela, o Brasil tem importante missão, cujo pontapé inicial já foi dado por meio de declarações de Celso Amorim.

A seguir, os principais trechos da troca de e-mails.

Hoje faz dez anos que Sérgio Vieira de Mello morreu. Qual o resultado das investigações?
Até agora, nulas – e as poucas e contundentes provas reunidas sobre o atentado não foram tratadas com a devida atenção. A investigação levada a cabo por Martti Ahtisaari (diplomata finlandês da ONU) foi muito débil e não revelou nenhum elemento esclarecedor da tragédia. Digo débil porque, por exemplo, Awraz Abdel Aziz Mahmoud Saeed estava disposto a revelar sua participação nos acontecimentos, mas apesar dos múltiplos pedidos internacionais para que ele fosse protegido, acabou executado antes de depor perante a Justiça.

Acredita que houve erros por parte da ONU na condução do processo?
Sim, e muitos. Sobretudo porque não foram adotadas medidas elementares para garantir nossa segurança. Qualquer que seja a experiência de um homem como o Sérgio, não se justifica deslocá-lo – ainda que transitoriamente – de um cargo tão importante, como o de Alto Comissário para os Direitos Humanos, para um país em guerra sangrenta. Que mensagem tão contraditória para o mundo: guerra e Direitos Humanos. Explica-se por que ele resistiu tão fortemente.

O que acha que a ONU deveria ter feito de diferente?
Sérgio deveria ter continuado a exercer as funções para as quais havia sido eleito. Além disso, em todo o mundo, à época, falava-se que ele era um dos candidatos com maiores chances – por sua trajetória – de suceder Kofi Annan como secretário-geral da ONU.

Acha que houve passividade da comunidade internacional em relação ao ocorrido?
Acho, principalmente por parte dos países mais implicados no conflito. Por exemplo: Tony Blair, na ocasião primeiro-ministro britânico, me enviou uma carta muito afetuosa, escrita a mão, com palavras de apoio, para me ajudar a superar a perda, e ressaltando as qualidades do Sérgio. Porém, o reconhecimento das virtudes dele nunca foi acompanhado de autocrítica nem de um esforço equivalente para esclarecer os acontecimentos.

A postura dos Estados Unidos poderia ter sido outra?
Sem dúvida. Quando houve o atentado à embaixada da Jordânia em Bagdá – um mês antes, em julho de 2003 –, Sérgio informou os EUA e a ONU sobre o fato de que a guerra entrava em uma fase dramática. Era o começo dos atentados a alvos civis, o que aumentou muito a insegurança de todos. A história mostrou que nem os EUA nem a ONU levou em consideração o alerta do Sérgio.

Qual o papel do Brasil no resgate da história dele?
É o único que pode fazer isso. E me sinto feliz por ver que, a cada dia, fica mais clara essa vontade. Amorim, hoje ministro da Defesa e que durante quase uma década levou adiante a agenda das relações exteriores do Brasil, deu o primeiro passo. Pela primeira vez, alguém no Itamaraty questionou: “Não sou dado a teorias conspiratórias, mas é difícil lembrar desse episódio sem me perguntar se o ‘ponto fraco’, pela ótica da segurança, não era deixado ‘fraco’ propositadamente, até para desviar os eventuais ataques do alvo mais procurado, a administração militar norte-americana”. É impressionante que essa reflexão tenha sido feita, dez anos depois, por alguém que pertença à diplomacia.

Como foi o tratamento da ONU aos sobreviventes? Em relação a você, especificamente?
Sempre lento, arrevesado e, em muitos aspectos, contraditório. A organização preferiu as medalhas e homenagens à denúncia e condenação do atentado. O principal problema foi não promover uma vigorosa investigação, que, sem dúvida, teria trazido um alívio muito maior. Para mim, a circunstância foi duplamente difícil: era a companheira do Sérgio, vivíamos juntos desde a época em que trabalhamos no Timor Leste; e, ao mesmo tempo, era uma sobrevivente do atentado e funcionária, há quase uma década, da organização. O comportamento da ONU foi, em alguns aspectos, contraditório e cruel, pois não apenas tentou manchar a relação que eu tinha com ele, mas também chegou a negar minha condição de sobrevivente – apesar de todas as imagens que me mostram entre os escombros do atentado.

Por que você acredita ter sido negligenciada pela organização?
Porque fui testemunha de atos que nem todos estão dispostos a assumir. E porque sou parte das vítimas que esperam um compartilhamento mais responsável da burocracia, não apenas medalhas e condecorações. O atentado foi o momento mais grave pela qual a ONU passou desde sua criação, no final da Segunda Guerra. Se a organização não reage vigorosamente para condenar e esclarecer o que aconteceu, acaba por comprometer a segurança e seu desempenho futuro.

Hoje, dez anos depois, houve alguma reparação às vítimas?
Até o ressarcimento às vítimas foi, muitas vezes, discriminatório. Não foram aplicados critérios iguais; em muitos casos, foram profundamente contraditórios. Passei três anos sob o impacto do choque pós-traumático e jamais senti que a organização me abraçava, ainda que fosse responsável pela missão que me foi designada – ou seja, por ter me enviado para representá-la no lugar mais perigoso do planeta.

Quais suas lembranças do momento do atentado?
Terríveis. Preferia não lembrar. Apesar de 10 anos terem se passado, ainda levo comigo cenas traumáticas e impossíveis de se descrever. Prefiro que as pessoas vejam os muitos vídeos que se fizeram e em que se podem ver minhas imagens tentando, desesperadamente, resgatar o Sérgio. A verdade é que, ainda hoje, me dói e me perturba falar sobre isso. Não consegui assistir a nenhum dos filmes e documentários que eu mesma promovi.

Você se desiludiu com a experiência na ONU?
Não, porque, apesar do comportamento dos burocratas, Timor Leste e Iraque me ensinaram o enorme valor que tem a ONU para a construção da paz e a defesa dos Direitos Humanos. Além disso, tive ambas as experiências ao lado do Sérgio, que é uma figura emblemática da diplomacia da ONU e da vida internacional.

O que acha da atuação do órgão atualmente?
Sobre isso, apesar do tempo que já passou, é difícil opinar – ainda que, para o incorretamente chamado “terceiro mundo”, a ONU continue sendo um meio útil para atrair recursos e expertise. Acho que ainda falta muita estrada para que a organização esteja à altura do que o mundo precisa. E ainda que me doa tudo o que aconteceu, prefiro crer que, algum dia, a ONU será uma organização nutrida pelos ideais de homens como o Sérgio.

Vocês viviam em NY quando ele foi designado para o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Como encararam a notícia?
Foi algo que nos alegrou muito. Naquele momento, estávamos fazendo grandes planos. Tínhamos visitado minha família, na Argentina, e a mãe dele, Gilda, no Rio. Além disso, os trâmites legais da separação do Sérgio já tinham sido concluídos, e Genebra parecia ser um lugar de relativa tranquilidade, que permitiria a ele cumprir a promessa de visitar a mãe com mais frequência. O Rio era seu lugar no mundo. Ele amava o Brasil, se identificava demais com o País, apesar de sua intensa vida internacional – ou talvez por causa disso. Tinha necessidade de laços afetivos existenciais.

Como foi a história de vocês?
Vivíamos uma relação afetiva tão profunda como solidária, nascida nos primeiros anos da reconstrução do Timor Leste, em condições de grande adversidade. Depois da vitoriosa missão, voltamos para NY, onde nossa vida se desenvolveu com relativa serenidade. Isso nos permitiu breves e vibrantes fugas, repletas de sonhos: alguns dias em Papua Ocidental; prolongadas visitas a minha família, na Argentina, país onde ele passou parte da infância; as fartas refeições na casa de Gilda, sua mãe, em Copacabana; e idas aos glaciares patagônicos… a neve e o silêncio eternos.

O que a mãe dele acha de toda esta história?
Ela sofreu muito a perda do filho, eram muito unidos. Sempre considerou injusto que o tivessem enviado para uma missão tão perigosa quanto aquela no Iraque. E nunca se sentiu acolhida pela ONU. É uma mulher adorável, que conserva intacta sua lucidez, lê muitos jornais e opina sobre a realidade mundial com muita avidez.

Como você atua, hoje, para preservar a memória de Sérgio Vieira de Mello?
É preciso lutar contra aqueles que pretendem tergiversar e reescrever a história do Sérgio. Minha principal missão, hoje, é defender a verdade, brigar para que os acontecimentos sejam esclarecidos e defender a integridade dele. Não podemos nos deixar enganar por quem pretende trocar medalhas e condecorações pelo silêncio e a escuridão. (COLABOROU MARILIA NEUSTEIN)

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